Clvis Arantes ‘velha-guarda’ da luta LGBTQIA+ em Mato Grosso. Chegou no Estado tentando fugir de sua orientao sexual e percebeu que no se foge de quem se . Em 1995, apenas para se socializar, fundou, junto com outros cinco amigos, o Grupo Livremente (GLM). Mas percebeu que, para a populao LGBTQIA+ no basta se encontrar para celebrar alegrias, preciso juntar foras para lutar por direitos.
O GLM, com quase 26 anos, o grupo de Mato Grosso mais antigo em atividade, que abriu caminhos para tantos outros, cada coletivo apresentando as demandas de acordo com as especificidades de cada letra: lsbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, pessoas queer, pessoas intersexo, assexuais e outras identidades de gnero ou orientaes sexuais abraadas pelo smbolo de ‘mais’.
O Leiagora entrevistou, esta semana, Clvis Arantes – diretor de Comunicao do GLM, para marcar o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, em 28 de junho. Uma data que nasceu de muita violncia – assim como so os dias dessa populao: at a dcada de 1960, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, relaes entre pessoas do mesmo sexo eram ilegais e os casais homoafetivos se refugiavam em bares e clubes. Por outro lado, quando descobertos, sofriam muitas agresses pelos policiais da poca.
Em 28 de junho de 1969, a polcia de Nova Iorque tinha um mandado para inspecionar o bar Stonewall Inn e prendeu 13 pessoas. Por conta do tratamento agressivo dos policiais, membros da comunidade LGBTQIA+ e outras pessoas foram se juntando no local e, reagindo priso violenta de uma mulher, foi iniciada a chamada Rebelio de Stonewall.
O entrevistado da semana fala das demandas da populao LGBTQIA+ e os avanos conquistados.
Leiagora – Em que contexto foi criado o Grupo Livremente?
Clvis Arantes - O Grupo Livremente nasce do desejo de pessoas que no tinham muita referncia para dialogar sobre as questes da homossexualidade. Naquela poca, era muito mais difcil que agora. A gente forma um grupo de seis pessoas e fala: ‘olha, vamos montar um grupo pra gente construir uma socializao, lazer e tudo mais’. Com o ar do tempo, a gente percebe que um grupo que trabalha com direitos humanos da populao LGBT precisava tambm dialogar sobre muitas questes, n? Falta de trabalho, questo da educao, da sade... Ento, o Livremente ganha visibilidade, porque a gente comea a ir para a imprensa, organizar seminrios, participar de chamadas por outras instituies. A a importncia de a gente ter um grupo que faa com que a gente tenha orgulho, porque a gente comea a se entender e falar ‘eu posso estar em qualquer lugar, no minha orientao sexual que vai me impedir’. O grupo Livremente ajuda a termos orgulho de sermos e estarmos no nosso lugar, com a nossa corporeidade, sem que a gente tenha que deixa-la no armrio para poder ir para qualquer atividade.
Leiagora - Fale um pouco sobre sua trajetria no movimento LGBTQIA+, enquanto homem gay.
Clvis Arantes - Eu venho do Paran fugindo da minha orientao sexual. Eu era jovem, igrejeiro - eu militava na igreja, eu no lidava de forma tranquila com minha orientao sexual. Eu escolho um lugar muito distante, porque eu queria exorcizar a minha orientao sexual, o meu desejo. A eu vou morar em Peixoto de Azevedo, onde s tinha garimpeiro e prostituio. 'Bom, aqui eu vou ficar bem no armrio'. Pelo contrrio, eu chego a Peixoto do Azevedo e o a entender que a minha orientao sexual ia comigo para onde quer que eu fosse. Eu fiquei em Peixoto de Azevedo por cinco anos, eu tinha terminado o Magistrio, comecei a dar aula e a militar no Sintep [Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Pblico de Mato Grosso] e, em 1989, eu participo de uma eleio para tesoureiro do Sintep/MT e venho transferido para Cuiab. J em Cuiab, uma cidade maior, eu tenho um pouco mais de coragem de dar mais visibilidade para minha orientao sexual. Porque, queira ou no, voc, na adolescncia, comea a pensar 'eu sou errado e preciso me ajustar ao padro de normalidade que a famlia, a igreja, o trabalho vo colocando para voc. (...) A eu conheo o movimento nacional, atravs da ABGLT (Associao Brasileira de Gays, Lsbicas, Travestis e Transexuais) e comeo a perceber que tinha muita coisa que a gente podia dialogar, a gente tinha muito a construir e que no era simplesmente uma orientao sexual, era questo de vida mesmo. Infelizmente, a universidade no prepara para lidar com a questo de nossos direitos, enquanto pessoa LGBTQIA+. E a gente vai para a sala de aula sem saber como fazer o trabalho, sem saber como acolher. A gente comea a discutir mais abertamente a questo dos direitos humanos da populao LGBTQIA+. Eu entro na direo da ABGLT, a eu vou para representar a ABGLT no Conselho Nacional de Polticas Pblicas para a Populaa LGBTQIA+ e em Mato Grosso a gente segue fazendo um trabalho de formiguinha, porque um Estado muito conservador, de uma dimenso territorial muito grande, a gente no consegue chegar aos municpios... e a gente comea a ser ado como referncia para as pessoas que sofrem violncia. E comea a criar canais de pra fazer a ponte entre a pessoa LGBTQIA+ em vulnerabilidade com os equipamentos de estado ou com os equipamentos do municpio: sade, educao, segurana pblica.
Evidente que vem surgindo novos atores... o grupo Livremente naquela poca ficava muito solitrio, hoje ns temos vrios grupos no Estado, tm muitas pessoas que falam sobre, independentemente de estarem em uma organizao, tem muita coisa sendo produzida pela Academia... E a gente deixa de ser solitrio e a a ser uma coisa mais coletiva... a Parada d um ‘up’ nessa visibilidade...
Leiagora - Voc pode citar alguns desses grupos e a quem eles representam aqui em Mato Grosso?
Clvis Arantes - A gente tem a Astramt, que a Associao de travestis de Mato Grosso, a Associao de Homossexuais de Sorrisos, a Associao de Travestis de Rondonpolis, em Primavera [do Leste] tem um coletivo de mulheres trans que dialogam com a questo da populao com HIV/AIDS... e vrios atores [sociais]: a Unio Nacional dos Estudantes, a Adufmat, o Sintep, a CUT, a prpria OAB abre uma comisso de diversidade... Os defensores tambm formam um coletivo de Defensores da Diversidade, a gente ganha um parceiro muito importante que o Ministrio Pblico, na pessoa de Dr. Henrique Schneider. Os vereadores... mesmo que a gente tenha uma parcela muito grande de fundamentalistas, a gente j consegue mapear no Estado alguns parlamentares que levam a pauta LGBT como bandeira. A tem o coletivo Mes Pela Diversidade... a gente costuma dizer: ‘uma me, quando sai do armrio, salva muitas vidas’. E outros espaos... a gente conseguiu criar, h trs anos, o Conselho Municipal de Diversidade Sexual em Cuiab, um espao novo em que a gente faz a discusso com os gestores. E a gente s cresce no dilogo, no embate, no enfrentamento!
Leiagora - Dia 28 de junho Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Por que importante esta data mundial e qual o tema nacional colocado em evidncia neste momento?
Clvis Arantes – O dia 28 para ns fundamental, porque o dia em que aconteceu a grande revolta de Stonewall, em que foi marcado para a populao mundial como o momento em que a gente diz ‘basta de violncia!’, a gente precisa se levantar contra a violncia. Nacionalmente, a gente est com a bandeira ‘LGBTfobia crime, vamos construir cidadania’. So dois aspectos: reforar a questo da criminalizao da LGBTfobia e a luta pelos direitos. um dia de celebrao, a gente celebra a vida... porque, quando se LGBTQIA+, a gente precisa celebrar a vida todos os dias, porque, por exemplo, a expectativa de vida de uma mulher trans, de uma travesti, de 35 anos. Cada momento para celebrar, principalmente neste momento de pandemia, que ns temos mais de 500 mil pessoas assassinadas pela falta de polticas srias para combater a covid-19. E a nossa populao [LGBTQIA+] est sofrendo muito, porque j tem uma vulnerabilidade muito grande por falta de emprego e ns estamos nos lugares da economia informal.
Comemorar o dia 28 para celebrar, mas tambm o dia da denncia, de dizer que a nossa populao continua sendo violentada, continua morrendo e continua sem direitos. Ns no temos nenhuma legislao no Brasil que tenha sido feita especialmente para a populao LGBTQIA+. O que ns fazemos? Ns tivemos que recorrer judicializao. Ns judicializamos todas as nossas bandeiras – e o Judicirio respondeu de forma positiva – para que a gente garantisse a criminalizao [da LGBTfobia], a unio estvel [entre pessoas do mesmo gnero], doao de sangue... Graas ao Judicirio, porque, pelo Congresso Nacional, a gente nunca teve sequer colocado em pauta questes especficas da populao LGBTQIA+. Pelo contrrio, nossa pauta sempre colocada como moralista. A questo do machismo, do kit gay, que foi jogado naquela poca para dizer ‘eles querem colocar o kit gay na escola’, a questo dizer que a gente quer acabar com a famlia... Muito pelo contrrio, a populao LGBTQIA+ luta para que a gente tenha direito de ser famlia. Ns s no lutamos para ser a famlia Doriana. Ns entendemos que famlia aquela que escolhemos e que tem de ser do jeito que ns entendemos que vai nos fazer feliz.
A gente escuta um deputado Cattani dizer as besteiras que ele diz nas redes sociais e fica pensando o que essas pessoas imaginam que a populao LGBTQIA+ faz 24 horas por dia, porque colocado como se a gente pensasse s em sexo. Tentam nos descaracterizar enquanto ser humano. Nesse momento, fundamental dizer: ‘ns temos famlia, ns queremos construir famlia, ns queremos trabalho, educao, sade, queremos continuar tambm decidindo os rumos de nosso pas’... Ns temos um projeto de sociedade, em que no cabe a LGBTfobia, no cabe o machismo, o racismo... e ns precisamos dizer isso para a populao [em geral]: ‘No basta dizer que queremos existir! Ns queremos existir, mas com qualidade de vida, queremos construir uma cidade que nos acolha, que nos permita o afeto’.
Leiagora - Voc citou dois assuntos que vamos resgatar. Primeiro, sobre o alto ndice de mortalidade das pessoas trans e das travestis. O Brasil o pas em que mais se mata pessoas trans no mundo. Por que isso acontece, do ponto de vista cultural, e o que est sendo feito para combater isso?
Clvis Arantes – Efetivamente, ns no temos polticas de promoo e de preveno, principalmente no Brasil, e a gente v a escalada de violncia crescendo. Com a impunidade, as pessoas se sentem autorizadas a violentar. Ns tivemos, h trs semanas, um jovem de 22 anos, que mora num bairro da periferia e ele foi aoitado por moradores que diziam, quando estavam batendo nele, ‘aqui lugar de macho, voc no vai estragar a nossa comunidade’. O ndice de violncia muito alto, as mulheres lsbicas continuam sendo vtimas de estupro corretivo, as mulheres trans e as travestis continuam sendo assassinadas, porque as pessoas entendem que ‘no normal’. O que se tem: quando h um padro social de ‘normalidade’, a gente precisa destruir, exterminar tudo que ‘no normal’. Ento, a violncia no Brasil e no mundo contra a populao LGBTQIA+ muito alta. No perodo de pandemia, com o isolamento e tudo mais, aumentou em 43% o nmero de casos de violncia contra a populao LGBTQIA+. D para concluir que temos a ausncia do Estado – o Estado no faz a parte dele! – e existe a falta de uma rede de proteo social: a famlia... uma pessoa, quando tem o apoio da famlia, ela tem fora para lutar contra o mundo, mas quando ela no tem, ela perde em potncia, ela fica mais vulnervel. Por que as travestis morrem mais? Porque as travestis esto em lugares mais vulnerveis... Grande parte das travestis est na prostituio, mas no porque elas escolheram, muitas vezes o que sobrou, o nico espao que sobra... muitas vezes, ns [da populao LGBTQIA+] estamos no subemprego... esta lgica excludente, violenta, que acaba colocando a nossa populao em maior vulnerabilidade. A imagina uma travesti, negra, da periferia, em situao econmica precria, voc tem uma pessoa que est trs vezes mais vulnervel. E ainda tem a violncia do Estado, n? Porque, quando o Estado no tem polticas pblicas, ele est negligenciando o prprio papel, que o de fazer essa preveno e essa proteo. Se o Estado no protege, quem que vai proteger? O aumento da violncia se d pela ausncia do Estado, pela ausncia de polticas pblicas.
Leiagora – Agora sobre dois casos recentes de Mato Grosso. Um o caso que voc j citou, do deputado estadual Gilberto Cattani (PSL/MT), que afirmou, por meio das redes sociais, que “ser homofbico uma escolha, ser gay tambm” e o outro o padre Paulo Antnio Mller, de Tapurah, que chamou de ‘viadinho’ um homem gay depois de uma publicao de Dia dos Namorados e deslegitimou o casamento homoafetivo. Voc pode comentar os casos e como o grupo Livremente atuou?
Clvis Arantes - Sim... importante dizer que a gente no pode criminalizar as respectivas instituies. Nesses dois casos, eles so fundamentalistas, porque, inclusive, a gente tem a posio do Papa Francisco dizendo que se precisa acolher, viver o evangelho [cristo] e tudo mais. Mesma coisa do Cattani – no a instituio [Assembleia Legislativa de Mato Grosso]. Mas a instituio vai ter que punir, porque, quando ele fala, ele fala pela instituio tambm, j que foi eleito para ela. Quando o padre fala, ele est fala pela instituio. Essas instituies precisam se pronunciar.
Nos dois casos, ns acionamos o Ministrio Pblico. No caso do Cattani, a gente entrou tambm com uma ao coletiva na Comisso de tica da Assembleia, pedindo a cassao do mandato, porque o que ele fez foi quebra de decoro. Ele tambm apresentou projetos na Assembleia Legislativa da Escola Sem Partido, escola sem ideologia... E na questo do padre, tambm no primeira vez que ele faz isso. Eles so dois expoentes, mas Mato Grosso est muito complicado. Em Cceres, agora, a vereadora Maz est sendo massacrada, porque ela apresentou um projeto de criao de um centro de referncia... As pessoas esto se sentindo autorizadas, a gente precisa trazer isso para a discusso. um momento que o governo federal... um governo genocida, machista, racista, que no entende que as pessoas tm direito vida e nega isso... ento, as pessoas esto se sentindo autorizadas... Se voc entra na internet hoje, tem uma enxurrada de agresses. O Cattani fez aquela atitude e, em seguida, um vereador da Cmara de Cuiab apresentou a indicao para ele receber um ttulo de cidado cuiabano. Olha que lgica mais perversa: o cara comete um crime, faz apologia violncia contra a populao LGBTQIA+ e um vereador de Cuiab indica o cara para receber um ttulo de cidado. Ento, uma violncia que vai s ganhando tamanho e se a gente no se cuidar, no vai poder sair de casa.
Leiagora - Neste dia 28, h o que comemorar? Quais so os grandes avanos para a comunidade e o que ainda precisa ser feito?
Clvis Arantes – H o que comemorar, sim, porque ns estamos vivos, vivas, ns somos muitos, muitas e ns estamos em todos os lugares. As pessoas vo ter que nos engolir mesmo! Cada dia mais a populao LGBTQIA+ negra, de periferia est assumindo espaos... nas ltimas eleies, ns crescemos 70% em nmero de vereadoras eleitas com a pauta LGBTQIA+, ento, a gente precisa comemorar, sim. Comemorar a vida! E quando a gente tem um governo genocida, que no valoriza a vida, a gente tem que dizer: ‘vacina no brao, comida no prato e muita resistncia!’.
Ns vamos fazer uma audincia pblica no dia 28 na Assembleia Legislativa, s 9 da manh, e essa audincia justamente para a gente, enquanto sociedade civil, trazer para a Assembleia Legislativa a nossa pauta, de forma organizada, de forma poltica... porque o nosso corpo poltico e tem que ser, 24 horas por dia, porque a nossa existncia no mundo j uma existncia poltica. Ento a gente vai celebrar, vai denunciar e vai propor polticas pblicas na Assembleia Legislativa, nessa audincia.
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